2 de setembro de 2010

CASO DO CHINELO DE DEDO



AÇÃO ORDINÁRIA (PROCEDIMENTO COMUM ORDINÁRIO) Nº 2009.70.05.002473-0/PR
AUTOR
:
JOANIR PEREIRA
ADVOGADO
:
OLIMPIO MARCELO PICOLI

:
EDSON LUIZ MASSARO
RÉU
:
UNIÃO - ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO
SENTENÇA
1. RELATÓRIO

JOANIR PEREIRA ajuizou a presente ação ordinária em face da UNIÃO - ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO, objetivando a condenação da ré ao pagamento de indenização por danos morais gerados em razão de humilhações sofridas perante o Poder Judiciário Trabalhista de Cascavel/PR.
Aduziu que:
a) ingressou com reclamatória trabalhista contra a empresa Madeiras J. Bresolin, em 29/03/2007, autuada sob o n. 1468.2007.195.9.0.2, perante a 3ª Vara Trabalhista de Cascavel, sendo a audiência de conciliação designada para 13/06/2007. Quando da realização do ato, o juiz Bento Luiz de Azambuja Moreira cancelou a audiência sob a alegação de que o autor não trajava calçado adequado, pois usava chinelo de dedo.. O ato foi adiado para 03/07/2007, oportunidade na qual afirma ter sofrido nova humilhação, pois o MM. Juiz ofereceu ao autor, na própria audiência, um par de sapato usado que trouxe dentro de um saquinho de supermercado;
b) o fato tomou repercussão nacional, sendo divulgado por todo tipo de imprensa e, por extrapolar as esferas de notoriedade da pessoa, a profissional e a de interesse público, deixou uma marca pejorativa na personalidade do autor, causando-lhe danos morais e processuais;
c) o autor não tinha a intenção de ofender a dignidade da justiça ao ir calçando chinelo de dedo, sendo a forma como está acostumado a se trajar, não podendo isto ter mais importância que o direito de acesso à Justiça;
d) para que haja responsabilização civil do Estado, nos termos do art. 37, §6º, da CF, basta a comprovação do dano e do nexo causal, sendo desnecessária a averiguação de dolo ou culpa, embasando-se na teoria do risco administrativo;
e) o lesado não agiu com dolo ou culpa, não contribuindo para o dano, devendo o Estado ser responsabilizado pelas lesões causadas ao autor;
f) nos termos do art. 186 do CC/2002, o ato praticado pelo Dr. Bento é ilícito e, combinado com o art. 927 do mesmo Codex legal, afasta qualquer dúvida acerca da reparabilidade do dano; e
g) na fixação do quantum indenizatório, não deve ser levada em conta a condição social do autor, mas sim o tamanho do dano causado, devendo a indenização ter efeitos pedagógicos, visando desestimular tais condutas, concedendo, inclusive, indenização a título de "dano punitivo". Juntou documentos de fls. 54/142.
O benefício da assistência judiciária gratuita foi concedido (fl. 143).
Citada, a União apresentou contestação (fls. 146/168), alegando, em preliminar: a) a conexão com a ação 2009.70.05.002057-7, em trâmite na 1ª Vara Federal de Cascavel, pois coincidentes o objeto e a causa de pedir, sobretudo a remota; e b) a impossibilidade jurídica do pedido, sob o argumento de que se objetiva indenização por ato praticado no pleno exercício da função judicante, o qual só gera dever de indenizar nos casos previstos expressamente em lei ou na CF/88. Além do mais, deve ser provado dolo ou fraude por parte do magistrado, nos termos do art. 133 do CPC, não se aplicando o art. 37, §6º, da CF/88, pois possui regramento específico.
No mérito, aduziu que:
a) os atos tipicamente judiciais revestem-se de imunidade, sendo inaptos a dar ensejo à responsabilização do Estado, salvo hipóteses expressamente previstas em lei;
b) a decisão proferida pelo CNJ no Procedimento de Controle Administrativo n. 20091000001233 bem se amolda ao caso, pois trata de matéria semelhante e, por fim, decide pela plausabilidade da restrição imposta às vestimentas para ingresso em fórum judicial, julgando improcedente o PCA;
c) o ato do magistrado de impedir a realização de audiência consubstancia em estrito cumprimento do dever funcional ou, no mínimo, em exercício regular de direito, não excedendo os limites do razoável, pois diversos Fóruns e Tribunais do país adotam regra semelhante;
d) o autor não comprova o dano causado, pois a audiência foi redesignada para 20 dias após, a pretensão trabalhista foi devidamente analisada e, quanto a repercussão do caso, não guarda relação com a atitude do juiz, não podendo a União ser responsabilizada, pois não comprovado o dano moral, experimentando o autor mero dissabor, por ele mesmo causado;
e) não existe nexo de causalidade entre a conduta do magistrado e o alegado dano, pois este foi causado pelo próprio autor, uma vez que seu advogado distribuiu cópia da ata de audiência para toda a imprensa, com o objetivo de propor futura ação indenizatória;
f) não só essa, mas como diversas outras audiências foram adiadas pelo magistrado em razão de as partes estarem trajando vestimentas inadequadas, provando que o Dr. Bento não considerou o autor indigno, mas sim considerou o calçado que ele utilizava inapropriado; e
g) na inicial, o autor afirma ser atitude rotineira do magistrado, o que demonstra uniformidade de tratamento e entendimento manifestado pelo Juiz, não se tratando de perseguição ao autor. Juntou documentos de fls. 169/250.
Houve réplica (fls. 259/271).
O pedido de conexão formulado pela União foi indeferido (fl. 275).
Foi colhido o depoimento pessoal do autor (fl. 290) e interrogadas as testemunhas arroladas pela parte autora (fls. 286/289). A União desistiu da oitiva da testemunha Bento Luiz Azambuja Moreira (fl. 313).
O autor (fls. 319/323) e a ré (fls. 328/339) apresentaram alegações finais.
Assim, vieram-me os autos conclusos para sentença.
É o relatório. Decido.

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 Preliminares:
2.1.1 Da conexão

Alega a União que existe conexão entre o presente feito e a ação n. 2009.70.05.002057-7, em trâmite na 1ª Vara Federal de Cascavel, pois coincidentes o objeto e a causa de pedir, sobretudo a remota.
Todavia, a preliminar argüida já foi vencida pelo Juízo no despacho de fl. 275, motivo pelo qual resta prejudicada.

2.1.2 Da impossibilidade jurídica do pedido

Afirma a União que o autor objetiva indenização por ato praticado por juiz trabalhista no pleno exercício da função judicante, o qual só gera dever de indenizar nos casos previstos expressamente em lei ou na CF/88, motivo pelo qual o pedido não tem sustentação jurídica. Aduz, também, que deve ser provado dolo ou fraude por parte do magistrado, nos termos do art. 133 do CPC, não se aplicando o art. 37, §6º, da CEF/88, pois possui regramento específico.
Ao contrário do que alega a União, o art. 37, §6º, da CF/88, aplica-se aos atos praticados por magistrados, sem que isso signifique tolher sua independência para julgar, isso por que a expressão "agentes públicos" é a mais ampla possível, abarcando desde os agente políticos (categoria na qual a doutrina majoritária enquadra os magistrados) até o mais humilde dos funcionários/empregados públicos, sejam estes concursados ou não. No mesmo sentido é a recente jurisprudência do nosso E. TRF da 4ª Região, que abaixo colaciono e adoto como razões de decidir:

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO EM RAZÃO DO ATO JUDICIAL. ART. 37, § 6º, DA CF/88.
1. Realmente, embora a matéria seja controvertida, entendo que a responsabilidade civil do Estado, prevista no art. 37, § 6º, da CF/88, compreende, também, os atos judiciais. - Em artigo de doutrina, intitulado "Responsabilidade do Estado por Atos Judiciais", publicado na Revista Arquivos do Ministério da Justiça, a. 50, nº 189, jan./jun. 1988, concluí, a pp. 76/7, verbis:
- "A responsabilidade do Estado por atos judiciais funda-se na regra geral sobre responsabilidade da Fazenda Pública por prejuízos causados na organização ou no funcionamento do serviço público.
- Ora, na medida em que o disposto no § 6º do art. 37 da Lei Maior enunciou o princípio da responsabilidade objetiva do Estado por ato de seus agentes, exercendo o Poder Judiciário um serviço público e sendo o magistrado o seu agente, é inarredável a conclusão de que os seus atos caem no âmbito dessa regra geral.
- Com efeito, essa é a melhor exegese do art. 37, § 6º, da Constituição Federal de 1988, a que melhor atende à sua finalidade e ao próprio espírito da Constituição, o que não deve ser desprezado pelo intérprete.
(...)
- Assim, face ao disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal de 1988, incumbe ao Estado responder perante o jurisdicionado lesado pelo ato judicial danoso, o que, por sua vez, resguarda a independência do magistrado. Por outro lado, a responsabilidade pessoal do juiz, que há de ser levada a cabo pelo Estado mediante ação regressiva, estará caracterizada apenas nos casos dos arts. 133 do CPC e 49 da Loman.
- Não se pretende, evidentemente, a responsabilidade do Estado em termos tão amplos de modo a comprometer a independência funcional dos juízes, sem a qual estes viveriam em permanente sobressalto ante o receio de serem responsabilizados civilmente, em ação direta ou por via regressiva, a chamado da Fazenda Pública.
- De forma que, não obstante a persistência das idéias que sustentam a imunidade do Estado-juiz, notadamente na jurisprudência, vai pouco a pouco perdendo terreno a tese da irreparabilidade dos danos originários do mau funcionamento do serviço da justiça (...).
- É o caso em exame. No caso dos autos, restou configurada a violação ao disposto nos arts. 5º, LXXV, e 37, § 6º, da CF/88, ensejando a procedência da ação, como reparação do dano moral sofrido pelo apelante.
(...)
2. Improvimento das apelações e da remessa oficial.(APELREEX 200671000403850, CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ, TRF4 - TERCEIRA TURMA, 05/05/2010) - Grifei.

Dessa forma, é juridicamente possível o pedido do autor, motivo pelo qual rejeito a preliminar levantada e adentro ao mérito.

2. Mérito

Cuida-se de ação ordinária de reparação de danos morais sofridos pelo autor em razão de ter sido adiada audiência trabalhista de conciliação em decorrência do autor comparecer calçando chinelo de dedo, traje considerado pelo magistrado Bento Moreira como incompatível com a dignidade da Justiça. Tal fato teve repercussão nacional e, segundo alega-se, teria lesado a imagem do autor, gerando dano moral.
O instituto jurídico da responsabilidade civil tem por finalidade garantir à pessoa lesada o direito à compensação dos prejuízos que lhe foram causados.
A responsabilidade civil do Estado, por atos comissivos ou omissivos de seus agentes, como é o caso dos autos, é de natureza objetiva, isto é, prescinde da comprovação de dolo ou culpa na conduta de seus agentes. Atualmente, a matéria está disciplinada no art. 37, § 6º, da CF, que determina:

Art. 37. § 6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Para a caracterização do direito à indenização, segundo a doutrina da responsabilidade civil objetiva do Estado, devem concorrer as seguintes condições: a) ação ou omissão; b) a efetividade do dano; e c) o nexo causal. Assim, demonstrado o nexo causal entre o fato lesivo imputável à administração e o dano, exsurge para o ente público o dever de indenizar o particular, mediante o restabelecimento do patrimônio lesado por meio de uma compensação pecuniária compatível com o prejuízo.
Resumindo, não se perquire acerca da existência ou não de culpa da pessoa jurídica de direito público, porque a responsabilidade, neste caso, é objetiva, importando apenas o prejuízo causado a dado bem tutelado pela ordem jurídica.
O Estado, para eximir-se ou atenuar a imputação da sua responsabilidade civil, deverá, por sua vez, comprovar que o dano decorreu de culpa exclusiva (ou parcial) da vítima ou de terceiro, ou, ainda, de fatos da natureza, como o caso fortuito ou força maior.
No caso, inexiste dano material a ser reparado, alegando o autor sofrer somente dano moral.
A propósito, o dano moral teve consagração definitiva no nosso ordenamento jurídico com a nova ordem constitucional instaurada em 1988. Anteriormente, muitas discussões pairavam sobre a matéria, o que, paulatinamente, foi sendo dirimido pela doutrina e jurisprudência, inclusive através de enunciados sumulares sobre o tema.
A previsão constitucional da indenização por dano moral encontra-se no artigo 5°, inciso V e X, que é considerada cláusula pétrea, visto que inserida dentro do rol dos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, in verbis:

Art. 5 - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
(...)
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

Impende salientar-se que a Constituição de 1988 apenas elevou à condição de direito fundamental a reparabilidade pelos danos morais, haja vista que esta já estava latente no sistema legal anterior.
O atual Código Civil consagrou expressamente a indenização por dano moral no artigo 186, in verbis:

Art. 186 - Aquele que, por ação ou omissão voluntária. Negligência, ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

É cediço o entendimento nas Cortes Superiores de que a comprovação do dano moral é despicienda quando provado o fato em si, o que ocorre na espécie. Dessa forma, fica superada a questão da comprovação do dano. Em síntese, a ofensa moral não exige prova de sua existência. Na verdade, a vítima está obrigada a comprovar o fato que lhe deu origem. Entende-se que a decorrência sentimental é tão íntima e tão vinculada ao evento sucedido, que esse fato subjetivo carregado pelo autor não depende de prova.
Nesse sentido manifesta-se a jurisprudência:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. (...) APLICAÇÃO DA SÚMULA N. 283 DO STF, POR ANALOGIA. COMPROVAÇÃO DE DANO MORAL. OFENSA AO ART. 186 DO NCC. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 284 DO STF, POR ANALOGIA. DANO IN RE IPSA. DESNECESSIDADE DA COMPROVAÇÃO DO PREJUÍZO NÃO PATRIMONIAL. OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE.(...)
(...)
4. Em terceiro lugar, no que tange à ausência de comprovação do dano moral suportado, do art. 186 do novo Código Civil não se retira a tese da imprescindibilidade de prova do dano moral, o que atrai a incidência da Súmula n. 284 do STF, por analogia.
5. Mesmo que assim não fosse, pacificou-se nesta Corte Superior o entendimento segundo o qual o dano moral é in re ipsa, ou seja, dispensa comprovação acerca da real experimentação do prejuízo não patrimonial por parte de quem o alega, bastando, para tanto, que se demonstre a ocorrência do fato ilegal. Neste sentido, v.: REsp 299.532/SP, Rel. Des. Honildo Amaral de Mello Castro, Quarta Turma, DJe 23.11.2009, e REsp 786.239/Sp, Rel. Min. Sidnei Benetti, Terceira Turma, DJe 13.5.2009.
(...)
(AGA 201000136140, MAURO CAMPBELL MARQUES, STJ - SEGUNDA TURMA, 16/04/2010) - Grifei.

Sobre a caracterização do dano moral ensina Yussef Said Cahali, em sua obra Dano Moral, Editora Revista dos Tribunais, 2ª Ed., p. 20/21:

Na realidade, multifacetário o ser anímico, tudo aquilo que molesta gravemente a alma humana, ferindo-lhe gravemente os valores fundamentais inerentes a sua personalidade ou reconhecidos pela sociedade em que está integrado, qualifica-se, em linha de princípio, como dano moral; não há como enumerá-los exaustivamente, evidenciando-se na dor, na angústia, no sofrimento, na tristeza pela ausência de um ente querido falecido; no desprestígio, na desconsideração social, no descrédito à reputação, na humilhação pública, no devassamento da privacidade; no desequilíbrio da normalidade psíquica, nos traumatismos emocionais, na depressão ou no desgaste psicológico, nas situações de constrangimento moral.

No dano moral, por atingir bens incorpóreos, como por exemplo a imagem, a honra, a vida privada, a auto-estima, há uma grande dificuldade em provar a ocorrência da lesão. Daí, surge a desnecessidade de a vítima provar a efetiva existência da lesão. O Superior Tribunal de Justiça tem firmado entendimento reiterado:

AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. RESPONSABILIDADE CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DECLARATÓRIOS. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA. REEXAME DE PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. FUNERAL. COMPROVAÇÃO DE DESPESAS. VALORES MÓDICOS. DESNECESSIDADE. DANO MORAL. QUANTUM. ALTERAÇÃO. DESPROPORCIONALIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. PROVA DO FATO GERADOR. JUROS MORATÓRIOS. TERMO INICIAL. DATA DO EVENTO DANOSO. SÚMULA 54/STJ. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.
(...)
V- Quanto ao dano moral não há que se falar em prova, deve-se, sim, comprovar o fato que gerou a dor, o sofrimento, sentimentos íntimos que o ensejam. Provado o fato, impõe-se a condenação (cf. AGA 356447-RJ, DJ 11.6.2001).
(...)
(AGA 200801341456, SIDNEI BENETI, STJ - TERCEIRA TURMA, 13/10/2008)

Tentando esquivar de sua responsabilidade, a União alega culpa exclusiva da vítima. Afirma que o suposto dano experimentado pelo autor decorreu do fato de o autor ou seu advogado terem dado amplo conhecimento à imprensa da ata de audiência, na qual consta que o ato não se realizou pois o então autor "compareceu em Juízo trajando chinelo de dedos, calçado incompatível com a dignidade do Poder Judiciário" (fl. 67).
Assim, inicialmente deve ser analisada a eventual ocorrência de culpa exclusiva da vítima.
Em seu depoimento pessoal (fl. 290 e CD de fl. 291), o autor afirmou que é lavrador, mas que está desempregado desde quando foi humilhado na Justiça do Trabalho, nunca mais conseguindo serviço. Esclareceu que foi procurar seus direitos na Justiça do Trabalho, mas chegando lá o juiz mandou-o embora por intermédio de seu advogado, pois estava de chinelo de dedo. Na oportunidade o advogado questionou a conduta do juiz, mas este disse-lhe que ali não era campo de futebol nem barco para vir de chinelo de dedo. Estava vestido de chinelo, calça jeans e camisa social, informando que não usa sapato, indo em todos os lugares de chinelo de dedo, ficando ruim agora, pois todo mundo o chama de "chinelão".
O juiz remarcou a audiência, oportunidade na qual pegou um sapato emprestado do seu sogro, pois não tinha e não tem sapato, nunca tendo sido barrado em lugar algum por estar de chinelo, só no Judiciário. De sapato, o juiz deixou-o fazer audiência, oportunidade na qual o Dr. Bento tentou doar um sapato novo ao depoente, na caixa, afirmando que se ele não possuía um sapato, que lhe doaria um, porém, o depoente disse não querer, pois esta acostumado a andar de chinelo e assim vai continuar. O Juiz pediu-lhe desculpas, afirmando que estava errado e que sabia que ele era uma pessoa de bem, mas o autor não aceitou as desculpas, pois o juiz tem que pagar pelo que fez para ele, esclarecendo que seu sentimento é de humilhação, com todo mundo passando e chamando ele de "chinelão", pessoas que ele nem sequer conhecia.
Informou que nunca passou pela sua cabeça que teria de ir ao Poder Judiciário de sapato, pois "é a Justiça, devendo ir com o que a gente tem". Por fim, respondendo aos questionamentos da União, afirmou que se sentiu ofendido pois rico e pobre tem que se atendido da mesma forma, esclarecendo que a imprensa ficou sabendo do caso pois o advogado ligou para eles para ver se adiantava a audiência, uma vez que o autor estava desempregado e precisava receber logo, afirmando por derradeiro que pelo fato ter sido noticiado pela imprensa que ele se sentiu ofendido.
No tocante a culpa exclusiva da vítima, temos dois danos diversos experimentados pelo autor, que devem ser analisados por ângulos diferentes:
a) o primeiro dano, gerado pela não realização da audiência trabalhista em razão de o autor comparecer ao ato trajando vestimentas que foram consideradas pelo magistrado como incompatíveis com a dignidade do Poder Judiciário. Tal ofensa fica evidenciada pelas declarações do autor, no sentido de que entende - corretamente - que ricos e pobres devem ser tratados de forma igual pelo Poder Judiciário, notadamente pela Justiça do Trabalho, órgão criado com o escopo de fazer valer os direitos dos trabalhadores, em sua maioria pessoas simples e de poucos conhecimentos acerca de seus direitos.
O direito ao acesso de todos os jurisdicionados à Justiça Trabalhista, independentemente de sua condição, é assegurado especificamente pela própria Carta Magna em seu art. 115, §2º, o qual determina que "os Tribunais Regionais do Trabalho poderão funcionar descentralizadamente, constituindo Câmaras regionais, a fim de assegurar o pleno acesso do jurisdicionado à justiça em todas as fases do processo" (grifei).
Além do mais, no tocante ao direito de acesso à Justiça genericamente considerado (CF/88, art. 5º, incisos XXXIV, alínea "a", e XXXV), bem como o direito à razoável duração do processo (CF/88, art. 5º, o inciso LXXVIII), oportuna é a lição transmitida pela Desembargadora do TRF da 4ª Região, Dra. Vânia Hack de Almeida, na Apelação Cível n. 2001.04.01.085202-9, a qual cito e adoto como razões de decidir, em decorrência de sua clareza e profundidade:

- É sabido que o Estado deve assegurar às partes meios expeditos e eficazes na prestação da tutela jurisdicional.
- E é o juiz quem deve, em nome do Estado, velar pela célere solução do litígio. A demora do processo inflige à parte o sofrimento, inclusive psicológico. Por isso, a efetiva prestação jurisdicional é problema que aflige os operadores do direito de longa data.
- Exsurge, a partir daí, a necessidade de uma interpretação sistemática das normas constitucionais, realizando o direito de obter a decisão justa em tempo razoável. Nessa trilha, de há muito a doutrina e a jurisprudência pátrias vêm trabalhando com o conceito de efetividade da jurisdição, buscando através de princípios consagrados na Constituição, como o da universalidade, o da jurisdição e o do devido processo legal, a concretização do ideal de uma justiça célere. É seguindo nesta rota que a Emenda Constitucional nº 45, de 2004, inseriu no art. 5º, o inciso LXXVIII, com a seguinte redação: "- a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação". Foi consagrada, desta forma, como garantia do cidadão, a razoável duração do processo e a celeridade processual. A Constituição de 1988 consagrou o princípio da universalidade de jurisdição, no art. 5º, inciso XXXV, pelo qual não se excluirá da apreciação do Judiciário lesão ou ameaça a direito. Acresce-se, agora, que a jurisdição deverá ser célere, prestada em tempo razoável. Exatamente por isso, a garantia de razoável duração do processo e celeridade processual deve ser concretizada de imediato, independentemente de qualquer outro ato normativo complementar. Seu conteúdo normativo se impõe. Saliente-se que a garantia ora examinada foi inserida no art. 5º da CF, que possui um § 1º, determinando a aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais.
- Manifesta-se, a partir da norma constitucional transcrita, um direito subjetivo a uma razoável e célere duração do processo. Direito subjetivo que, como tal, opõe-se ao Estado. Há norma consagrando o direito fundamental de exigir do Estado uma prestação jurisdicional apropriada. Deixar de dar aplicabilidade imediata ao novel dispositivo constitucional é torná-lo letra morta. É retirar a força normativa da Constituição e ela admitirá, então, voltar a ser acusada de uma "mera folha de papel".
- (...) A parte tem direito a uma resposta adequada do Estado. E o Poder Judiciário é o foro de afirmação deste direito.
(...)
- Sendo o próprio acesso à justiça um direito fundamental, não se poderia entendê-lo senão como um direito a uma "proteção efetiva", como bem observa Robert Alexy, já que obrigado o Estado (inclusive na sua feição judiciária) a provê-lo de maneira eficiente e tempestiva. No que ora interessa, importa observar que dentro dessa tutela jurisdicional efetiva vai compreendido o direito a um processo com duração razoável, sem dilações indevidas, que bem distribua o ônus do tempo processual entre as partes. Consectário esse, aliás, que hoje se encontra inclusive explícito em nossa Constituição (art. 5º, LXXVIII).
- (...) O direito à duração razoável, como refere Mitidiero (Op. cit., pp. 62 e seguintes), é auto-aplicável em nosso direito, o que coloca a problemática da tempestividade processual no nível constitucional. A justiça que tarde acode é manifesta injustiça.
(...)
(AC 200104010852029, VÂNIA HACK DE ALMEIDA, TRF4 - TERCEIRA TURMA, 05/10/2005) - Grifei e negritei.

Destarte, o constrangimento sofrido pelo autor é evidente e não decorre de culpa da vítima, pois teve seu processo protelado (mesmo que por apenas 20 dias) sem uma justificativa plausível, bem como negado seu acesso à Justiça por motivo banal.
Confirmam tal constatação as afirmações da testemunha José Orlando Chassot Bresolin (fl. 286 e CD de fl. 291), presente em ambas as audiências como preposto da empresa. Este afirma que na segunda audiência, em decorrência da situação, todos se sentaram e devem ter olhado para o pé do autor para ver se ele estava de calçado, oportunidade na qual o juiz ofereceu um sapato ao autor. A testemunha Darci Alves (fl. 288 e CD de fl. 291), por sua vez, afirmou que o autor saiu da primeira audiência abalado, sendo consolado pelo advogado, apresentando fisionomia bem abatida.
b) o segundo dano foi gerado pela ampla divulgação do fato pelos mais diversos meios de comunicação. Neste ponto, o dano é inconteste, porém, não gera o dever de indenizar da União.
Em que pese as audiências na Justiça do Trabalho serem públicas, elas não são divulgadas pelo Poder Judiciário na imprensa. Como esclarecido pelo próprio autor em audiência - respondendo aos questionamentos da União - este se sentiu ofendido não só por o juiz ter adiado sua audiência, mas também pelo fato ter sido noticiado pela impressa o motivo do adiamento, "pois agora todo mundo o chama de 'chinelão', pessoas que ele nem sequer conhecia, (...) ficando ruim sua situação".
Acontece que o dano gerado em decorrência da ampla divulgação do fato pela impressa, em que pese ter ligação com a conduta do juiz de adiar a audiência, em decorrência das vestimentas do autor, ocorreu após a quebra do nexo de causalidade, uma vez que só houve toda a repercussão midialística em decorrência da atitude do advogado da parte autora, o qual encaminhou cópia da ata da audiência a diversas empresas de comunicação.
Destarte, no tocante a este dano, apesar de não configurar culpa exclusiva da vítima, igualmente não configura responsabilidade da União, pois não se consubstancia em desdobramento natural dos atos praticados pelo seu agente, o magistrado Bento Luiz de Azambuja Moreira.
Assim, verifica-se que está afastada a culpa exclusiva da vítima em ambos os danos, porém, deve ser analisada a responsabilidade da União somente no tocante ao dano moral decorrente do adiamento da audiência sem motivo plausível.
Não prospera, também, os argumentos da União no sentido de que o juiz teria agido no estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de um direito, uma vez que comparecer a um ato judicial trajando calça jeans, camisa social e chinelo não gera ofensa alguma à Justiça do Trabalho (geraria caso comparecesse fantasiado, num nítido tom de deboche, o que não ocorreu). Alias, calçar chinelos numa audiência não causa tumulto algum à realização do ato, não justificando sua postergação.
Diante do caráter punitivo e ressarcitório da reparação do dano moral, devem ser consideradas as circunstâncias e peculiaridades de cada caso, as condições econômicas das partes, a menor ou maior compreensão do ilícito, a repercussão do fato e a eventual participação do ofendido para configuração do evento danoso. É o que ensina Sergio Cavalieri Filho:

Importa dizer que o juiz, ao valorar o dano moral, deve arbitrar uma quantia que, de acordo com o seu prudente arbítrio, seja compatível com a reprovabilidade da conduta, a intensidade e duração do sofrimento experimentado pela vítima, a capacidade econômica do causador do dano, as condições sociais do ofendido e outras circunstâncias mais que se fizerem presentes.
(Programa de Responsabilidade Civil, 3ª ed., Editora Malheiros, p. 97/98).

Nesse sentido também se posiciona a jurisprudência. Colaciono:

DIREITO CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. PENHORA INDEVIDA. HOMÔNIMO DE DEVEDOR. DANO MORAL. CONFIGURAÇÃO. DIREITO À INDENIZAÇÃO. CRITÉRIOS DE ARBITRAMENTO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.
1. Verificada a presença dos pressupostos da responsabilidade civil - a) o fato da vida social que causou dano (penhora indevida); b) o nexo de imputação, consubstanciado na negligência e imperícia da ré; c) a ilicitude da conduta; d) o nexo causal entre o fato e o dano experimentado pelo autor; e, especialmente, e) o dano moral, subjetivo (sofrimento psíquico) e objetivo (imagem e nome da vítima) - resta configurada a obrigação de indenizar.
2. A fim de fixar o "quantum" devido a título de reparação de dano moral, faz-se uso de critérios estabelecidos pela doutrina e jurisprudência, considerando, especialmente: a) os vestígios materiais; b) o bem jurídico atingido; c) a situação patrimonial do lesado e a da ofensora, assim como a repercussão da lesão sofrida; d) o elemento intencional do autor do dano; e) o aspecto pedagógico-punitivo que a reparação em ações dessa natureza exigem; f) as circunstâncias especiais do caso; e g) a analogia.
3. Verba honorária fixada em 10% do valor da condenação, nos termos do artigo 20, § 4º, do CPC e em observância aos parâmetros desta Turma.
(AC 200270060004355, MARGA INGE BARTH TESSLER, TRF4 - QUARTA TURMA, 20/07/2009)
Sendo assim, no propósito de que seja observada a proporcionalidade entre a lesão e o ressarcimento, devem ser considerados os seguintes aspectos: a) em 13/06/2007 a audiência trabalhista do autor não foi realizada pois este compareceu ao ato calçando chinelos; b) o demandante sofreu constrangimentos e aborrecimentos, pois teve de retornar em outro dia, bem como emprestar um sapato de seu sogro para poder ter apreciada, pelo Poder Judiciário, a sua demanda; c) a União detém possibilidade econômica para suportar a execução da sentença; e d) o caráter pedagógico da punição.
Assim, com apoio nas premissas acima dispostas, bem como considerando que a audiência trabalhista foi redesignada para data bastante próxima; o magistrado pediu desculpas ao autor particular e publicamente, reconhecendo que havia se equivocado no caso; e que o autor sentiu-se ofendido com a ampla divulgação que o caso teve - fato ocasionado por conduta de terceiro, mas que não lhe causou somente prejuízos, pois como esclarecido pela testemunha José Orlando Chassot Bresolin (fl. 286 e CD de fl. 291), arrolado pelo próprio autor, por causa da repercussão do caso, o acerto que a empresa fez com o autor triplicou de valor -, fixo o valor da indenização por danos morais em R$ 10.000,00 (dez mil reais).
Tal valor deverá ser suportado pela União, ressalvado o direito de regresso, em ação própria, contra o agente causador do dano, o Juiz Bento Luiz de Azambuja Moreira.

3. DISPOSITIVO

Ante o exposto, julgo procedente o pedido deduzido na inicial, com resolução de mérito, para o fim de condenar a União a pagar ao autor o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) a título de indenização por danos morais.
O valor da condenação em danos morais deverão ser corrigidos pelos índices oficiais de remuneração básica e juros aplicados à caderneta de poupança, nos termos do art. 5º da Lei nº 11.960/09.
Custas isentas (cf. fl. 85 e art. 4º, I, da Lei nº 9.289/96).
Condeno a União ao pagamento de honorários advocatícios, fixados em 10% do valor da condenação, na forma do art. 20, §4º, do CPC, corrigidos pelo INPC até a data do efetivo pagamento.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Havendo interposição de recurso tempestivo e, caso necessário, feito o devido preparo, desde já recebo, nos termos do artigo 520 do Código de Processo Civil.
Caso haja necessidade de complementação de preparo, intime-se a parte interessada para que comprove o recolhimento das custas processuais/porte remessa retorno, no prazo de 05 (cinco) dias. Havendo seu cumprimento, recebo desde logo o recurso interposto; caso contrário, deixo de recebê-lo, pois deserto.
Em seguida, intime-se a parte recorrida da sentença proferida, bem como para, querendo, apresentar contrarrazões ao recurso interposto no prazo legal.
Caso a parte recorrida também apresente recurso, recebo-o desde logo, intimando a parte contrária para, querendo, apresentar suas contrarrazões no prazo legal.
Outrossim, em caso de recurso, quando da subida dos autos ao e. TRF da 4ª Região, intimem-se as partes para que obrigatoriamente efetuem o cadastramento dos respectivos advogados, na forma no art. 5º da Lei nº 11.419/2006, esclarecendo, para tanto, que o presente feito será digitalizado e passará a tramitar no meio eletrônico, pelo sistema e-Proc, em observância ao disposto no art. 1º, §4º, da Resolução nº 49, de 14 de julho de 2010, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
Cumpridas as determinações acima, remetam-se os autos ao TRF 4ª Região, com as homenagens de estilo.
Após o trânsito em julgado e intimadas as partes do retorno do processo, nada sendo requerido em 15 (quinze) dias, dê-se baixa e arquivem-se os autos.

Cascavel, 25 de agosto de 2010.

MARIZE CECÍLIA WINKLER
Juíza Federal Substituta

Nenhum comentário:

Postar um comentário